Musicoterapia: A melodia de uma terapia
- Jéssica dos Santos

- 20 de ago. de 2017
- 6 min de leitura
A musicoterapia trabalha o corpo, a mente e os sentidos através da música. É aconselhada a doenças, como a depressão, hiperatividade, autismo, e doenças de terceira idade como a perda de memória e de fala. Dinis de 8 anos, Maria da Conceição de 87 anos e João de 89 anos são casos de sucesso e têm em comum a musicoterapia. Melhoraram a relação com o outro, o aumento da concentração e o desenvolvimento dos sentidos. No entanto, o pouco reconhecimento existente em Portugal leva a que ainda haja um longo caminho a percorrer.
O bairro localizado no Estoril é calmo. A grande quantidade de moradias e prédios contrasta com o ambiente que se vive. Nas estradas passam poucos carros. E os passeios são ocupados por um ou outro peão. São três da tarde, e o casal Maria da Conceição e João preparam-se para mais uma sessão de musicoterapia em sua casa. Depois de ter sido diagnosticado demência ao seu marido, Maria da Conceição decidiu introduzir a música aos seus dias. Há dois meses que usufruem desta intervenção.
O edifício grande de um amarelo forte tem o portão aberto, como que a dar as boas-vindas aos que por lá passam. “Boa tarde. Os senhores já estão à espera da menina”, diz a senhora enquanto limpa cuidadosamente as escadas da entrada do prédio.
“É fantástico. Tranquiliza-me bastante. O meu marido adora cantar e assobiar. Eu prefiro as maracas”
A porta do segundo andar está aberta. Maria da Conceição encontra-se junto à parede do hall de entrada. “Olá, prazer. Entre esteja à vontade”. A sala, ampla e luminosa, tem como fundo a praia do Estoril. “É bonita a vista, não é?”, pergunta João Branco, marido de Maria da Conceição.
O casal está junto há 63 anos. “Festejámos recentemente esta data. Estivemos com os nossos filhos. Foi uma alegria!”, exclama a senhora de 87 anos. A cumplicidade entre João e Maria é evidente. Entre carinhos e conversas, tratam-se por “maroto” e “meu amor”. “Conhecemo-nos aqui no Estoril. O meu marido era gestor hoteleiro e eu trabalhava num escritório”, afirma Maria. João já não possui uma memória tão viva como a da sua mulher. O passado escapa-lhe por entre as palavras. Aos 89 anos, João sofre de demência.
A musicoterapia entrou na vida do casal em fevereiro. Através do centro comunitário da Boa Nova, localizado no Estoril, o casal teve conhecimento desta terapia. Trata-se de um projeto financiado pela Câmara de Cascais que visa prestar sessões de musicoterapia ao domicílio e em instituições tanto a idosos, crianças ou jovens que necessitam de um acompanhamento especial. A musicoterapeuta Joana Gonçalves acompanha o casal uma vez por semana, em sessões de uma hora e meia.
João Branco retira a flauta de uma bolsa, onde se encontra também um papel. “Miss Joana vem às quartas-feiras. Toca-nos guitarra. É uma menina muito simpática e como ela não há igual”, lê, como se de um lembrete se tratasse. Uma forma de eternizar no papel aquilo que a musicoterapia representa para si e para a sua esposa. “É fantástico. Tranquiliza-me bastante. O meu marido adora cantar e assobiar. Eu prefiro as maracas ”, explica Maria.
Entre pandeiretas, maracas, uma viola e uma flauta, o casal canta a história da sua vida, que compuseram com a musicoterapeuta, Joana Gonçalves. Uma das técnicas da musicoterapia é a composição de canções, através de alterações de letras de músicas conhecidas. “Esta é uma forma de os pacientes falarem sobre si, revisitar o seu passado e darem-se a conhecer de uma forma subtil”, explica Joana. É uma forma de partilha. Uma partilha cantada.
“Não esteja mais de oito dias sem cá vir!”, exclama João ao despedir-se de mais uma sessão de musicoterapia. À saída, Joana comenta: “Eles agora vão estar à janela a despedirem-se”. Ao atravessar a passadeira, vira-se para trás e lá está, como prometido, João e Maria a acenarem e a agradecerem pela visita. “Custa-me muito ter que os deixar!”, exclama.
“Trabalhamos para que a musicoterapia seja reconhecida em termos legais como uma profissão da área da saúde”
Mudar de rumo
Joana Gonçalves dedicou-se durante oito anos a ajudar pessoas. Trabalhou como assistente social no Banco Alimentar. Quando a rotina se apoderou da sua vida, Joana decidiu mudar o seu rumo. “Despedi-me há dois anos e vim fazer musicoterapia.”
O seu dia-a-dia tem um ritmo próprio. Com a guitarra atrás, Joana tem entre quatro a cinco sessões por dia. “Neste momento, sou só musicoterapeuta mas é muito difícil viver só disto. Ainda não é uma área profissionalizada”, salienta.
A profissionalização da musicoterapia é um dos objetivos da Associação Portuguesa de Musicoterapia (APMT), que criou uma petição que visa o reconhecimento do papel do musicoterapeuta em Portugal. “Trabalhamos para que a musicoterapia seja reconhecida em termos legais como uma profissão da área da saúde”, afirma Ana Esperança, musicoterapeuta e presidente, desde 2015, da APMT.
A procura por este tipo de intervenção terapêutica tem vindo a aumentar, mas mantém-se ainda a dificuldade em divulgar a musicoterapia enquanto terapia. “A música ainda é muito associada a lazer. É difícil associar a saúde”, explica Ana.
Enquanto musicoterapeuta, Ana tem como pacientes maioritariamente crianças e idosos. Mas já começa a existir uma procura por esta terapia por parte de jovens e adultos. “Os efeitos da musicoterapia são notáveis na maioria dos pacientes, independentemente da sua necessidade.”
Durante um estágio, Ana trabalhou num lar de idosos, onde lidou com uma realidade que haveria de marcar o seu caminho enquanto musicoterapeuta. Foi apresentada a uma senhora que não mantinha qualquer ligação com os que a rodeavam. Apresentava uma postura cerrada sobre si própria. “Quando a musicoterapia entra na sua vida, foi-lhe proporcionado um tempo e um espaço em que pode ser e existir sem exigências e limitações. Nutrimos o eu. Aquele eu que está encerrado pelas amarguras da vida”, relembra Ana Esperança.
A senhora não falava com ninguém. Entrava e saía da sala de convívio do lar, sem trocar uma única palavra com os restantes idosos presentes. As perguntas que lhe eram colocadas não tinham resposta. Após dez sessões de musicoterapia a cargo de Ana Esperança, a senhora já apresentava mudanças. “Começou a emergir, a existir. Limpou o seu espaço energético.” A partir daí, o caminho fez-se de ascensão: “No final da intervenção já apresentava uma postura aberta. Comunicava, dançava, cantava”.
O poder da musicoterapia
Numa outra realidade, num espaço distinto e com um acompanhamento diferente, Dinis tem em comum com o casal Maria e João a musicoterapia.
Junto à porta da sala, na escola Dom Luís da Cunha, encontra-se uma folha a identificar o espaço: “Sala de terapias”. Já se ouve a música de boas-vindas ao Dinis a mais uma sessão de musicoterapia. No chão encontram-se duas almofadas e vários instrumentos. Do outro lado da parede, na rua, ouvem-se os gritos das crianças a brincar. A agitação é visível. Ambiente típico de uma escola. Dinis encontra-se concentrado a tocar tambor, enquanto acompanha a musicoterapeuta Catarina da Isabel que toca viola.
Com sete anos, Dinis tem uma forma de estar própria. A doença rara que o acompanha desde o nascimento trouxe-o à musicoterapia. “Tomei conhecimento da musicoterapia através de pesquisas na internet. Procurava terapias complementares para o Dinis”, afirma Sofia de 37 anos, mãe de Dinis.
Ao fim de quatro anos de terapia, os resultados são notórios. “O Dinis tem feito grandes evoluções. É uma criança mais calma, relaciona-se mais com o outro e já tem uma maior facilidade em conversar”, explica Catarina. Sem que Dinis se aperceba, cada dia é um progresso. Uma meta cumprida. Como se trata de uma intervenção feita com instrumentos apelativos, “o trabalho terapêutico acaba por não ser evidente”. O Dinis não se apercebe que está a trabalhar “o corpo e a mente”.
O contacto entre Catarina da Isabel e Dinis expressa-se através da música. É a forma como se relacionam e como entram no universo um do outro. “A música foi o meio que me permitiu chegar a ele, porque muitas vezes expressarmo-nos por palavras é difícil para crianças especialmente com necessidades especiais”, afirma a musicoterapeuta.
A voz de Dinis percorre a pequena sala, onde se encontra. É o momento de dizer adeus a mais uma sessão. Com um sorriso na cara, Dinis transporta a sua energia para o tambor e grita: “Até para a semana”.
Amanhã será um novo dia. Mais uma oportunidade para Catarina da Isabel, Joana Gonçalves, Ana Esperança, e todos os musicoterapeutas da APMT continuarem a ajudar pessoas levando a música consigo, e trabalhar numa terapia que ainda tem um longo caminho a percorrer, em Portugal, para que o seu valor seja reconhecido.
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