Carlos Santos Pereira: “Aprenda uma coisa: a independência no jornalismo custa muito caro.”
- Jéssica dos Santos

- 20 de ago. de 2017
- 9 min de leitura
Calmo, assertivo e modesto. Carlos Santos Pereira viveu de perto as guerras em Angola, Nicarágua, Peru, Afeganistão, Iraque, Balcãs e Polónia. Esteve clandestino, foi preso e escreveu sempre a verdade. Tem 66 anos, 40 dos quais dedicados ao jornalismo. Atualmente, ocupa o seu tempo com a pintura e a música, sem nunca perder a curiosidade de querer saber para lá do horizonte.
Começou por trabalhar na área do sindicalismo e das relações laborais. Cobriu os problemas sindicais numa altura importante - a seguir ao 25 de abril. Poucos anos mais tarde, encontrava-se a reportar os conflitos na Polónia durante a crise de 1990. A sua curiosidade jornalística fê-lo passar por situações que ainda hoje o marcam. Os seus largos anos de experiência não são visíveis na forma como fala. Não existe qualquer vanglória no seu discurso, nem na forma de estar. Carlos esteve reticente quanto à realização deste perfil, pois diz ser uma pessoa “pouco interessante”. Falar de si próprio é algo que não faz parte de si, isto porque aquilo que já fez e sabe não lhe interessa. “Interessa-me o que ainda não fiz e o que ainda não sei.”
Curioso em ascensão
Carlos é uma pessoa simples. Os poucos centímetros que ostenta e a roupa simples que veste passam despercebidos. O seu ar sério não esconde totalmente a fragilidade que aparenta no seu corpo magro. Ao chegar ao café, cujo local não lhe era bem familiar, pede um café e senta-se numa cadeira soltando apenas um “olá”. Carlos não é tímido. É convicto das suas palavras e apresenta um vocabulário rico. Assim que se inicia a conversa, as três pessoas presentes no café dirigem o olhar para o jornalista, cuja voz faz eco.
Carlos Santos Pereira é jornalista há 40 anos. “Mais coisa menos coisa”, afirma com a cabeça a olhar para cima e a fazer contas em voz baixa. A formação sempre foi a chave para o seu crescimento enquanto jornalista. Nunca frequentou um curso de jornalismo, mas procurou nas áreas da filosofia, relações internacionais, história e estratégia bases que complementassem o seu trabalho. Apesar de ter nascido numa época em que eram poucos os jovens que iam para a universidade, o jornalista reconhece nos pais o sonho de os filhos prosseguirem os estudos.
Natural de uma pequena aldeia do concelho de Ourém, Carlos Santos Pereira sempre quis conhecer o que estava para lá da serra. A paixão pelo passado e o presente levou-o ao jornalismo. “Vivia dividido entre a atualidade e a história.” Sempre foi decidido e depressa traçou o esboço daquele que seria o seu projeto de vida. “De repente idealizei um caminho que foi seguindo os seus rumos. Tratava-se de partir da vida académica para a vida real, a prática. Fazer o meu percurso no terreno e, mais tarde, quando sentisse mais vontade de «arrumar as botas», regressava à área académica.” Esta ânsia para estar no epicentro dos acontecimentos levou Carlos a contar outras estórias. As estórias da atualidade. “Eu gosto de encarar a história e as estórias que escrevo partindo do presente para o passado”, afirma.
Reportagem de guerra
A ânsia de conhecer mais sobre a atualidade levou-o para a Polónia nos anos 90. “Não se tratou de uma guerra, mas de uma revolução social e política que depois teve aspetos violentos, porque o governo acabou por impor a lei marcial e o movimento sindical acabou por ir para a clandestinidade”, começa por explicar. “Andei com eles [movimento sindical] na clandestinidade e fui preso.” De forma sucinta, Carlos resume o primeiro cenário de conflito que teve de enfrentar. Fala com naturalidade, como se estivesse a descrever a vivência de outra pessoa. Pormenoriza pouco. As dores ainda estão lá, meio que adormecidas, e o jornalista prefere abordar o assunto sem grandes detalhes.
Para Carlos Santos Pereira fazer “jornalismo e boa reportagem implica a capacidade de vestir a pele das pessoas; tentar perceber como é que sentem e olham”. O jornalista segue o lema deixado por Robert Capan que diz que “se a fotografia não saiu suficientemente bem é porque não te chegaste suficientemente perto”. É assim que Santos Pereira vive e trabalha. “Para se perceber as coisas realmente, para as sentir como aqueles que as vivem, tens que ir para o barulho, tens que andar no meio das pessoas, tens que de algum modo te tornar num deles”. De repente, tudo o que cita assemelha-se a conselhos a reter sobre o jornalismo. Falava para um tu. Como se tratasse de um mestre diante de um aprendiz.
Por reger a sua vida e o seu trabalho desta forma, Carlos reconhece que teve o reverso da medalha. Sentiu as consequências das suas decisões, e da sua luta pelo jornalismo verdadeiro, cru e puro. “Evidentemente que passei por situações más, das quais nem gosto de falar, porque entendo que são ossos do ofício.”
A verdade que não se conta
A forma como a informação recolhida pelos jornalistas correspondentes é divulgada é um tema um pouco controverso para Carlos Santos Pereira. O próprio diz que dá “pano para mangas”. Tem a preocupação de resumir a sua opinião consoante aquilo que viveu, sem desconsiderar nada nem ninguém. “Vivemos numa época em que a informação que circulava internacionalmente, nos grandes média internacionais, sobre estes conflitos, era muito uniformizada.”
A informação que era distribuída pelos grandes meios de referência era “trabalhada e burlada para dar uma certa visão”. Quem ia ao terreno e tinha a coragem de entrar em confronto com a visão consensual das coisas percebia que a realidade não era bem aquela que pintavam. “Eu não gosto de falar de mim, mas vou-lhe dar um exemplo. Eu lembro-me que a dada altura na guerra em Sarajevo, todos os repórteres que iam cobrir matéria naquele país iam já com a cabeça ensaboada com uma visão definitiva do que se passava lá.”
A luta pelo jornalismo independente trouxe-lhe alguns dissabores com outros repórteres. “Tive uma grande discussão com um grande repórter e escritor espanhol. Disse-lhe que para aquilo que ele escrevia nem precisava de ir para o local do acontecimento.” Os outros, ainda que poucos, que ousavam escrever aquilo que viam e ouviam, eram “ameaçados pela redação”.
“A ideia que se queria passar era que os sérvios eram os agressores, os croatas uma vítimas e a Nato tinha que intervir”, explica o jornalista. Sem que pergunte o porquê, Carlos Santos Pereira antecipa-se e refere que toda esta corrente visava a “sobrevivência da NATO”. “A América queria que a NATO entrasse em guerra ali. Portanto era necessário trabalhar o terreno para justificar uma intervenção da NATO. O que os jornalistas de todo o mundo andavam a fazer era o papel de lacaios a preparar-lhes o terreno”.
No caso do Kosovo era fundamental para a NATO e para os EUA entrar em conflito e bombardear a Sérvia, uma vez que para bombardear um país soberano e reconhecido internacionalmente era necessário arranjar alguma justificação para isso. Portanto foi preciso criar uma corrente de informação, de modo a justificar a intervenção junto da opinião pública.
Relativamente às razões subjacentes a este conflito, Carlos Santos Pereira refere que “a NATO queria ocupar uma parte do Kosovo, pois pretendia instalar bases militares naquela região pois a Sérvia, para além de ser uma resistente quanto ao absoluto domínio americano, era também uma aliada próxima da Rússia e no fundo o objetivo era humilhar e confrontar a própria Rússia”.
Foram três meses de bombardeamentos contínuos, mas a grande batalha diária era a da informação. Carlos teve a ousadia de lutar contra a corrente de (des)informação vigente. Os cânones que eram impostos aos jornalistas despertavam no jornalista uma atitude de contestação que era evidenciada pelas palavras que escrevia, limpas de qualquer condicionamento imposto. “Fui afastado de uma serie de sítios. Fui proibido de aparecer em diversos sítios. Fui ameaçado na minha própria casa. Mas nunca cedi. Sempre segui os meus valores.”
O seu caminho cruzava-se com as histórias do povo. Os medos, as tristezas, os receios quanto ao futuro faziam também parte da vida do jornalista. Marcaram-lhe muitas histórias. “A dada altura, entrevistei muita gente na rua e havia muitas pessoas que diziam que em 1941 tinham sido bombardeados pelos Nazis, e que, agora, em plena democracia voltavam a ser bombardeados da mesma maneira pelos americanos, em nome da democracia e direitos humanos.”
Depois de todas as adversidades, de ver o seu trabalho limitado, o empenho e dedicação pouco reconhecido e de ter sido impedido de realizar alguns projetos, Carlos Santos Pereira afirma que “desistir do jornalismo nunca fez parte da [sua] equação”. “Tive muito medo. Nunca desisti, mas obrigou-me a alguma prudência. Não se esqueça que o primeiro dever de um repórter de guerra é manter-se vivo para poder contar a história.”
Muitas das vezes, as prioridades foram alteradas. O trabalho ocupava a maior parte do tempo do jornalista. “Obviamente que todas estas situações tiveram repercussões na minha vida pessoal. É difícil manter relações familiares e amizades estáveis, quando uma pessoa passa a vida fora”, afirma. Quando regressava da guerra era sinónimo de boa comida, um lar para dormir, em vez de um abrigo, e tempo para conversar com os seus. Mas separar as realidades era difícil. Depois de tudo o que se vê, ouve e sente num cenário de conflito, distanciar-se é uma tarefa muito complicada. “Às vezes, sentia-me um bocado vazio e sentia falta daquilo. Era lá que eu devia de estar. Era quase um sentimento de culpa. A minha mulher na altura tinha reações de muita irritação, como é natural.”
Todos os cenários de guerra estão-lhe gravados na memória. Mas aquele que não esquece, aquele que permanece vivo, é o conflito nos Balcãs. “Também houve da minha parte um grande envolvimento emocional. Depois de se viver realidades como estas, quer se queira quer não, há sempre um grande envolvimento por parte do jornalista. Já é difícil cobrir um jogo de futebol de forma imparcial, agora imagine numa situação de guerra em que o que está em causa não é marcar um golo ou outro, mas, sim, matar ou morrer.”
A imparcialidade é difícil, mas é algo que o jornalista preza muito. É a sua regra de ouro no trabalho. “Obriguei-me a uma coisa complicada e altissimamente perigosa que é passar um período a cobrir o conflito de um lado, e depois ia conhecer o outro lado, de forma a ver a mesma realidade percecionada de diferentes formas.”
Desalinhado, competente e verdadeiramente um repórter. É assim que os amigos e conhecidos do jornalista o descrevem. “O Carlos gosta do que faz e não se fica por abordagens superficiais. Por tudo aquilo que já passou, hoje é um homem que sabe ler o mundo de uma forma mais objectiva, esclarecida e pragmática,” afirma Jorge Martins, diretor do jornal Notícias de Ourém e amigo de Carlos Santos Pereira.
Todos os cenários que cobriu foram observados apenas pelos seus olhos de jornalista. “Andava sempre sozinho. Sempre procurei trabalhar sozinho. Quero ter a minha própria visão e a minha própria agenda. Quando toda a gente vai a correr para norte, eu vou imediatamente para Sul.” Esta solidão, também entendida por independência e autonomia no trabalho, é uma característica presente na vida do jornalista que se apelida de “cão solitário”. “Trabalhar com este grau de exigência não é a melhor maneira de fazer amigos.”
Há um Carlos Santos Pereira antes e depois da guerra. “Houve períodos de pesadelos. Sem conseguir dormir.” As marcas mais profundas são de outra ordem. “Tornamo-nos pessoas mais atentos a tudo o que seja violação de direitos”, começa por explicar. “Tornei-me ultra sensível a tudo o que é estragar comida. As pessoas que me rodeiam não percebem. Qualquer migalha de pão tem de ser aproveitada. E obviamente que estou muito mais atento à forma como a informação é divulgada. É preciso questionarmo-nos. A informação não pode ser consensual”, afirma.
Jornalismo: Cenário em conflito
Os anos passam, as épocas mudam e o jornalismo tenta inovar-se. Carlos Santos Pereira relembra cada vez mais as regras que faziam e fazem o seu jornalismo. Adaptar-se ao que o rodeia é imperativo, mas há coisas que para o jornalista são inconcebíveis e impossíveis de alterar. “Já não se tem o brio que se tinha antigamente. As notícias, hoje em dia, apostam numa forte componente de espetáculo. Quebram-se códigos deontológicos. Ultrapassa-se limites. E tudo por causa das audiências.”
Para Carlos Santos Pereira vivemos numa “sociedade da mediatização”. “A primeira coisa que um jovem jornalista deve fazer é manter-se lúcido e resistir às cedências no jornalismo. É claro que não é fácil, porque se não assumir minimamente os compromissos arrisca-se a ser despedido. Agora cabe às escolas de jornalismo, ao sindicato e aos próprios jornalistas lutarem pelo ofício do jornalista fiel aos princípios elementares.”
Presente
É uma pessoa pouco dada a novas tecnologias. Ainda cultiva em si os velhos hábitos. Gosta de pintar, aprender música, ler e obviamente escrever. O telemóvel que traz consigo é de aspeto antigo, ainda a preto e branco, como se o tempo não passasse por ele. Apenas está contactável durante a hora de almoço, a partir das 14 horas até as 15 horas, não porque está ocupado, mas apenas porque gosta de passar o seu tempo sem virtualidades. Durante a conversa, o telefone tocou três vezes. Em todos os momentos atendeu, por se tratar de assuntos de extrema importância. “Este objeto é muito irritante”, diz enquanto lê no visor o nome da pessoa que o chama. “Por isso é que eu na maior parte das vezes passo a vida a perdê-lo. Deixo-o em qualquer canto. Irrita-me.”
Neste momento, o jornalismo já não ocupa grande parte do tempo de Carlos Santos Pereira. Mas mesmo sem o ritmo frenético de outros tempos, é um homem que não pára de trabalhar e dedicar-se a outras coisas. Jorge Martins conheceu Carlos Santos Pereira num contexto profissional. “Quando começámos a falar sobre o que pretendia de uma colaboração que lhe tinha proposto, Carlos deu-me uma resposta desconcertante. Disse-me que ia tentar fazer assim que tivesse tempo livre porque nos próximos dias teria que se deslocar a Lisboa para as aulas de gaita-de-foles”. Jorge Martins achou a resposta “fantástica”. “O certo é que ele foi às aulas e uns dias depois tinha um trabalho crítico de quatro páginas, com esquemas ilustrativos feitos à mão por ele”, relembra.
Carlos Santos Pereira mantém-se ativo e com a mesma curiosidade sobre o mundo que o levou a envergar por esta área. “Continuo a ser estudante, a aprender e a tentar evoluir.”
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